Queira fazer uma música que fosse capaz de exercer uma empatia e um efeito de estranhamento, ao mesmo tempo. Um disco com influência do cinema de Cláudio Assis. Para isso, queria uma banda crua, livre, à vontade para criar, errar, consertar. Queria pessoas em confluência comigo quando digo que o artista é uma mentira. E que, ao mesmo tempo, topassem um disco com aspirações populares, música de rádio, música pra ser assoviada no metrô.

Queria uma banda como no disco do Jards de 72, como no Ave Sangria de 74. Então convidei Babalu pra bateria, Nalesso pras cordas e Luis Lucena pro baixo, pessoas marcantes na minha trajetória e apaixonadas por criação, cada um a sua maneira. O método, livre em seu início, logo desenhou-se composto por bricolagens, montagem, choques e justaposições, síncopes, coros e muito lalaiá, lereiê – que é quando a gente canta o verso com o corpo, sem pretensão de convencer ninguém.

Já os temas versam sobre desejo, saudade, processo de fuga, livrar-se da culpa, remendo, cuidado, costura, conserto, arranjo, reforma de si e das relações, tudo desordenadamente junto. Utopicamente, queríamos esgarçar a canção, multiplicar a forma, para além do conteúdo. O resultado foi uma canção feita de um mel sujo e amargo, como gostaria Manoel de Barros.
Depois da base bateria/baixo/guitarra pronta, juntamos uma pequena orquestra com Rodrigo Ribeiro no trompete, Rafael Cirilos nos teclados e Thiago Pereira gravando arco no baixo acústico. E, pra fechar, juntei Fernanda Broggi e Julio Dreads pra formatar os coros e vozes paralelas, piras de quem passou a vida ouvindo Itamar.
Sorte minha, todo mundo topou, se comprometeu e assumiu os muitos riscos em gravar um disco com uma pandemia em andamento. Não foi fácil. Meu pai morreu no penúltimo dia de gravação. Recebi a noticia, entrei na técnica para gravar a ultima guia de voz e fui embora.

Aqui é o lugar onde eu acerto na vida, um dos poucos lugares onde eu acerto, onde consigo construir relações solidárias, maduras, de confiança e entrega. Aqui é meu lugar de cura e percepção. Aqui eu acerto, então me deixem acertar. De forma geral, eu não presto, mas meu disco sim.

Reparo é solar, de entrega e cura.

Micha, 24 de março de 2021